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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Morte de Ayrton Senna acabou salvando a vida de muitos pilotos da Fórmula 1


SÃO PAULO - Há exatos 19 anos registrei em minha memória uma experiência que jamais será esquecida. Vi Niki Lauda dizendo, em tom de cobrança, a Ayrton Senna, pouco antes da largada do GP de San Marino de 1994, em Ímola: "Você tem de tomar a iniciativa, só você tem força para liderar um movimento desses".
Lauda, campeão do mundo em 1975, 1977 e 1984, assessor do presidente da Ferrari e seu amigo, Luca di Montezemolo, já havia conversado com Ayrton sobre a necessidade de recriar a associação dos pilotos (GPDA) a fim de cobrar maior segurança na Fórmula 1. Naquele instante, pouco depois das 13 horas do dia 1.º de maio, todos se preparavam para a largada da corrida, a terceira da temporada, profundamente chocados.
  No dia anterior o austríaco Roland Ratzenberger falecera em decorrência do violento choque de seu Simtek no muro da curva Villeneuve. E sexta-feira Rubens Barrichello, da Jordan, havia sofrido terrível acidente também, na Variante Baixa, mas sobrevivera apenas com fratura no nariz e leves lesões generalizadas.
Ayrton ouviu Lauda e, sério, lhe lembrou que na reunião programada para quarta-feira os dois iriam discutir a questão. Desde a etapa anterior, em Aida, no Japão, Ayrton nos dizia que aqueles carros estavam "incrivelmente nervosos". A FIA proibiu quase todos os recursos eletrônicos em 1994 e não reduziu a potência dos motores.
 Recursos como a suspensão ativa, responsável por garantir grande geração de pressão aerodinâmica, e o controle de tração, importante para manter a dirigibilidade do carro nas saídas de curva, não mais podiam ser utilizados. "Está claro para todo mundo que esses carros são difíceis de pilotar e é muito fácil o piloto perder seu controle", comentou Lauda com os jornalistas. Eu estava dentre eles.
 Ayrton trazia o mesmo semblante do primeiro dia no autódromo Enzo e Dino Ferrari, quinta-feira: tenso. Nós os esperávamos, no início da tarde, para entrevistá-lo e, quando chegou, seu estado de espírito era evidente. Estava finalmente na equipe Williams, "a de outro planeta", como a definia, time oficial da Renault, com seu motor V-10, e depois de duas provas não somara nenhum ponto.
 Já Michael Schumacher, da Benetton, escuderia oficial da Ford com seu motor V-8 apenas, vencera as duas etapas anteriores, no Brasil e em Aida. Para complicar seu quadro emocional, o amigo Rubinho dera um susto em todos, na primeira classificação, sexta-feira - eu estava no Hospital Maggiore de Bolonha quando Ayrton foi visitá-lo à noite - e no sábado Ratzemberger morreu.
Anos mais tarde, o médico da Fórmula 1, e amigo de Ayrton, o notável doutor Sid Watkins nos contou que o orientou a não disputar o GP de San Marino. "No sábado à noite conversamos, ele me expôs suas aflições e fiquei impressionado. Um ser humano não poderia competir numa atividade com a Fórmula 1 naquele estado emocional. Disse a Ayrton para não correr."
Ayrton lhe respondeu não ser possível. O que diria a Frank Williams e aos representantes das empresas que investiam na escuderia, por exemplo? Já no sábado, depois do anúncio da morte de Ratzemberger, Ayrton não regressou à pista. Mas seu tempo lhe garantiu a pole position. O neurocirurgião inglês Sid Watkins faleceu em setembro do ano passado, aos 84 anos.
Na realidade, Ayrton reagia de maneira distinta do comum desde a quinta-feira, quando pediu para sentarmos com ele no motorhome da Williams, enquanto almoçava, já depois das 15 horas. Acabara de chegar de uma cidade próxima, onde estivera para o lançamento de um bicicleta com o seu nome. Tinha os cabelos longos, olhar distante, como se algo, ou um conjunto de coisas dominasse seus pensamentos.
Havia a pressão do campeonato, em que todos esperavam muito dele, mas até então não somara pontos, e as incertezas de um enorme investimento realizado dias antes, ao se tornar representante da marca Audi no Brasil. Mais para a frente no fim de semana teve de conviver com novas tragédias na Fórmula 1 e circulou a notícia de que seu irmão, Leonardo, presente na Itália, lhe apresentara gravações de conversas comprometedoras de sua namorada, Adriane Galisteu.
Esse era o quadro assustador de Ayrton antes da largada daquele GP de San Marino. Lembro-me de vê-lo passar do meu lado, sábado, ao deixar o centro médico do autódromo, quando foi se informar sobre Ratzemberger. Ayrton claramente havia chorado muito lá dentro.
Quem chorou mais, no entanto, foram milhões e milhões de fãs de Ayrton, no mundo todo, no dia seguinte, quando a doutora Maria Tereza Fiandri anunciou às 19h05, hora local, 14h05 de Brasília, no Hospital Maggiore de Bolonha, para nós, jornalistas: "Senhores, por favor. Desde as 18h40 Senna não registra mais atividade cardíaca. Ele está morto".
O doutor Sid Watkins, o mesmo que desejava ver Ayrton fora daquela corrida, nas muitas conversas que manteria conosco nos anos seguintes sempre dizia: "A morte de Ayrton permitiu a sobrevivência de muitos de seus colegas".
Em conjunto com o presidente da FIA, Max Mosley, Watkins criou o que viria a se chamar mais tarde Instituto de Segurança para os Esportes a Motor. "A grande diferença entre o que se fazia até o ocorrido em Ímola e agora é a metodologia de estudos. Tudo tem uma base científica e quando incorporada nos carros ou na segurança dos circuitos ou no atendimento médico é já o resultado de experimentos práticos também. Sabemos que vai funcionar", explicava sempre Watkins.
É imensa a lista de mudanças significativas introduzidas no automobilismo depois das tragédias daquele GP de San Marino de 1994. Alguns exemplos: o cockpit dos carro protege muito mais o piloto, está menos exposto. O testes de resistência a impactos do monocoque, onde se encontra o cockpit, são muito mais exigentes. Bem como nos capacetes. Os pilotos dispõem do Hans, sistema que protege a coluna cervical nos casos de impactos. O serviço de resgate nos acidentes foi padronizado.
Mais: A retirada do piloto do cokcpit obedece rigoroso procedimento. As áreas de escape dos autódromos foram sensivelmente ampliadas. Adotou-se, em alguns pontos, o chamado softwall, muro capaz de absorver parte da energia do choque. Os ambulatórios dos autódromos são hoje minihospitais bem equipados.
E muitos outros recursos destinados a melhorar a segurança de todos estão sendo estudados, como a cobertura do cockpit, o airbag e proteção para que no caso de os pneus se tocarem os carros não decolarem.
Esta quarta é uma data triste, pela perda de um grande homem, de um excepcional piloto, dentre os maiores da história, mas ao mesmo tempo, por mais paradoxal que possa parecer, de ter o que celebrar num certo sentido: esse aumento exponencial da segurança. Desde então a Fórmula 1 não conviveu mais com tragédias. E quantas não foram as ocasiões em que, sem a espantosa evolução vivida desde 1994, os acidentes não teriam sido fatais?
Livio Oricchio - O Estado de S. Paulo

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