SÃO PAULO - Há exatos 19 anos registrei em minha memória uma
experiência que jamais será esquecida. Vi Niki Lauda dizendo, em tom de
cobrança, a Ayrton Senna, pouco antes da largada do GP de San Marino de 1994,
em Ímola: "Você tem de tomar a iniciativa, só você tem força para liderar
um movimento desses".
Lauda, campeão do mundo em 1975, 1977 e 1984, assessor do
presidente da Ferrari e seu amigo, Luca di Montezemolo, já havia conversado com
Ayrton sobre a necessidade de recriar a associação dos pilotos (GPDA) a fim de
cobrar maior segurança na Fórmula 1. Naquele instante, pouco depois das 13
horas do dia 1.º de maio, todos se preparavam para a largada da corrida, a
terceira da temporada, profundamente chocados.
Ayrton ouviu Lauda e, sério, lhe lembrou que na reunião
programada para quarta-feira os dois iriam discutir a questão. Desde a etapa
anterior, em Aida, no Japão, Ayrton nos dizia que aqueles carros estavam
"incrivelmente nervosos". A FIA proibiu quase todos os recursos
eletrônicos em 1994 e não reduziu a potência dos motores.
Anos mais tarde, o médico da Fórmula 1, e amigo de Ayrton, o
notável doutor Sid Watkins nos contou que o orientou a não disputar o GP de San
Marino. "No sábado à noite conversamos, ele me expôs suas aflições e
fiquei impressionado. Um ser humano não poderia competir numa atividade com a
Fórmula 1 naquele estado emocional. Disse a Ayrton para não correr."
Ayrton lhe respondeu não ser possível. O que diria a Frank
Williams e aos representantes das empresas que investiam na escuderia, por
exemplo? Já no sábado, depois do anúncio da morte de Ratzemberger, Ayrton não
regressou à pista. Mas seu tempo lhe garantiu a pole position. O neurocirurgião
inglês Sid Watkins faleceu em setembro do ano passado, aos 84 anos.
Na realidade, Ayrton reagia de maneira distinta do comum
desde a quinta-feira, quando pediu para sentarmos com ele no motorhome da
Williams, enquanto almoçava, já depois das 15 horas. Acabara de chegar de uma
cidade próxima, onde estivera para o lançamento de um bicicleta com o seu nome.
Tinha os cabelos longos, olhar distante, como se algo, ou um conjunto de coisas
dominasse seus pensamentos.
Havia a pressão do campeonato, em que todos esperavam muito
dele, mas até então não somara pontos, e as incertezas de um enorme
investimento realizado dias antes, ao se tornar representante da marca Audi no
Brasil. Mais para a frente no fim de semana teve de conviver com novas tragédias
na Fórmula 1 e circulou a notícia de que seu irmão, Leonardo, presente na
Itália, lhe apresentara gravações de conversas comprometedoras de sua namorada,
Adriane Galisteu.
Esse era o quadro assustador de Ayrton antes da largada
daquele GP de San Marino. Lembro-me de vê-lo passar do meu lado, sábado, ao
deixar o centro médico do autódromo, quando foi se informar sobre Ratzemberger.
Ayrton claramente havia chorado muito lá dentro.
Quem chorou mais, no entanto, foram milhões e milhões de fãs
de Ayrton, no mundo todo, no dia seguinte, quando a doutora Maria Tereza
Fiandri anunciou às 19h05, hora local, 14h05 de Brasília, no Hospital Maggiore
de Bolonha, para nós, jornalistas: "Senhores, por favor. Desde as 18h40
Senna não registra mais atividade cardíaca. Ele está morto".
O doutor Sid Watkins, o mesmo que desejava ver Ayrton fora
daquela corrida, nas muitas conversas que manteria conosco nos anos seguintes
sempre dizia: "A morte de Ayrton permitiu a sobrevivência de muitos de
seus colegas".
Em conjunto com o presidente da FIA, Max Mosley, Watkins
criou o que viria a se chamar mais tarde Instituto de Segurança para os
Esportes a Motor. "A grande diferença entre o que se fazia até o ocorrido
em Ímola e agora é a metodologia de estudos. Tudo tem uma base científica e
quando incorporada nos carros ou na segurança dos circuitos ou no atendimento
médico é já o resultado de experimentos práticos também. Sabemos que vai
funcionar", explicava sempre Watkins.
É imensa a lista de mudanças significativas introduzidas no
automobilismo depois das tragédias daquele GP de San Marino de 1994. Alguns
exemplos: o cockpit dos carro protege muito mais o piloto, está menos exposto.
O testes de resistência a impactos do monocoque, onde se encontra o cockpit,
são muito mais exigentes. Bem como nos capacetes. Os pilotos dispõem do Hans,
sistema que protege a coluna cervical nos casos de impactos. O serviço de
resgate nos acidentes foi padronizado.
Mais: A retirada do piloto do cokcpit obedece rigoroso
procedimento. As áreas de escape dos autódromos foram sensivelmente ampliadas.
Adotou-se, em alguns pontos, o chamado softwall, muro capaz de absorver parte
da energia do choque. Os ambulatórios dos autódromos são hoje minihospitais bem
equipados.
E muitos outros recursos destinados a melhorar a segurança
de todos estão sendo estudados, como a cobertura do cockpit, o airbag e
proteção para que no caso de os pneus se tocarem os carros não decolarem.
Esta quarta é uma data triste, pela perda de um grande
homem, de um excepcional piloto, dentre os maiores da história, mas ao mesmo
tempo, por mais paradoxal que possa parecer, de ter o que celebrar num certo
sentido: esse aumento exponencial da segurança. Desde então a Fórmula 1 não
conviveu mais com tragédias. E quantas não foram as ocasiões em que, sem a
espantosa evolução vivida desde 1994, os acidentes não teriam sido fatais?
Livio Oricchio - O Estado de S. Paulo
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